Brasil: Fraude e abuso em projetos de compensação de carbono na Amazônia

Fotografia aérea com nuvens e rio sinuoso passando pela floresta tropical Floresta amazônica no Pará (© Felipe Werneck/Ibama/CC BY-SA2.0)

1 de nov. de 2023

Em Portel, na Amazônia, mercadores de carbono venderam, de forma, aparentemente, ilegal, créditos de carbono por uma área de floresta tropical de propriedade do Estado e que é povoada por comunidades ribeirinhas. Além disso, os realizadores do “projeto” não efetuaram qualquer controle efetivo na região florestal da área, enganaram a população, não lhes oferecendo nada senão esmolas.

A Defensoria Pública do Estado do Pará ajuizou cinco ações contra a Prefeitura de Portel e várias empresas nacionais e internacionais que realizam projetos de compensação de carbono na região, tendo requerido sua invalidação. A Defensoria pretende, com isso, impedir projetos de carbono ilegais, que estão sendo executados sem a autorização do estado do Pará e que violam os direitos das comunidades ribeirinhas.

Os casos já tinham sido revelados no ano passado pela World Rainforest Movement (WRM), uma ONG com sede no Uruguai. A organização ambiental e de defesa de direitos humanos chamou essas atividades de "colonialismo do carbono", publicando numerosas irregularidades e práticas questionáveis.

Recentemente, o portal “O Globo” publicou uma investigação jornalística detalhada, um podcast de 30 minutos e uma video-reportagem sobre os negócios que tem por objeto a venda de créditos de carbono e cujos realizadores já embolsaram somas milionárias. Os Projetos RMDLT, Pacajaí e Rio Anapu-Pacajá ficam no município de Portel, situado a cerca de 250 km a oeste de Belém, na Amazônia. Eles compreendem uma área florestal total de 4.519 km². Trata-se, supostamente, de projetos de proteção climática e da floresta - os chamados  projetos REDD- com uma duração de até 40 anos.

Os projetos de carbono violam os direitos territoriais

As áreas de floresta utilizadas pelos projetos de carbono particulares, segundo a Defensoria Pública, estariam sobrepostas a áreas florestais tituladas pelo Estado (portanto, bens públicos), para os quais as autoridades do estado do Pará não concederam qualquer autorização. Segundo a Defensoria, os responsáveis pelo projeto de carbono violaram os direitos territoriais e o direito da população ao livre consentimento prévio e informado.

Na área, cerca de 1500 famílias vivem às margens do rio. As empresas teriam adentrado nos assentamentos na floresta sem autorização estatal, sem estudos prévios e sem controle das autoridades, teriam realizados inspeções e inventários florestais, bem como registrado as famílias. Segundo “O Globo”, os realizadores dos projetos de carbono utilizam, aparentemente, títulos de propriedade rural na floresta que já foram declarados inválidos e anulados há muito tempo.

Os projetos não oferecem qualquer proteção efetiva à floresta tropical e ao clima.

“Foram projetos de gaveta, projetos no papel, que efetivamente não operaram qualquer proteção ambiental nessas áreas de floresta na Amazônia”, diz a “O Globo” a defensora pública Andreia Barreto, que redigiu a ação. “Não há nenhum tipo de proteção efetiva da floresta pelas empresas que compraram esses créditos de carbono para fazer a compensação de suas emissões”.

Dentre os compradores dos questionáveis créditos de carbono estão empresas internacionais como as companhias aéreas Air France e Delta Airlines, a produtora de macarrão Barilla, a químico-farmacêutica Bayer, o fabricante de aviões Boeing, as produtoras de bens eletrônicos como Kingston, Samsung e Toshiba, e ainda, a Siemens Energy e o time de futebol britânico Liverpool.

Essas, ao que tudo indica, adquiriram os certificados regularmente no mercado de créditos de carbono. No entanto, aparentemente, fizeram-no sem antes checar se tudo estava correto, havendo confiado nos mercadores e certificadores de carbono. Os créditos de carbono oferecem ao comprador uma solução confortável, rápida e vantajosa. Em vez de reduzirem a zero as emissões danosas ao meio-ambiente, eles podem compensá-los com os créditos, podendo, com isso, apresentar-se como pró-clima.

Os três projetos foram certificados sob o selo “Verified Carbon Standard (VCS)”, da certificadora norte-americana Verra. Esta é, mundialmente, a número 1 nos negócios privados de créditos de carbono. A Verra declarou para “O Globo” que os projetos estariam registrados com ela e que a organização estaria cooperando com a Defensoria Pública. A Verra, contudo, afasta qualquer responsabilidade, porquanto os projetos registrados teriam sido verificados e validados por terceiros. As auditorias seriam, em regra, encomendadas pelos próprios realizadores do projeto

A população local foi enganada e não obteve benefício algum

“Apesar do mercado de carbono ser privado, o que está sendo negociado é um bem público, pela Constituição a floresta é um bem público”, declarou para “O Globo” a promotora Ione Nakamura, da Promotoria de Justiça Agrária - Castanhal - do Ministério Público do Estado do Pará.

"A impressão é que eles internalizam o lucro, enquanto a responsabilidade de manter a floresta continua sendo do estado e das comunidades”, continua Nakamura.  As últimas seriam pouco remuneradas para isso, porque essas relações não estariam bem pactuadas. As comunidades não teriam tido a assessoria técnica e jurídica necessária para verificar essas propostas e negociar de igual para igual com as empresas.

Os moradores dos assentamentos reclamam que não teriam recebido sequer um centavo com a venda dos créditos de carbono gerados pelos projetos. Em vez disso, teria havido distribuição de cestas básicas, camisetas e fogões de lata à lenha, os quais, segundo a população, seriam inúteis. Além disso, eles teriam sido enganados com oferecimentos de ajuda relativamente ao Cadastro Ambiental Rural, os quais lhe teriam sido apresentados como se fossem títulos de propriedade, o que não é o caso.

Nas ações, a Defensoria Pública requer que os direitos territoriais das comunidades nos cinco assentamentos aos bens públicos sejam garantidos e que os projetos de compensação de carbono, bem como todos os negócios relacionados, sejam declarados inválidos. Além disso, a Defensoria requer que as pessoas responsáveis pelo projeto sejam impedidas de ingressar nos assentamentos, além de ter requerido, em um processo judicial separado, que os afetados sejam indenizados, em virtude de dano moral coletivo, com uma indenização no valor de 5 milhões de reais.

Em suas três páginas do projeto, a Verra publicou uma declaração segundo a qual a organização teria aberto um prazo para a realização de novas validações e verificações. Durante esse processo, estaria suspensa a emissão de novos títulos de créditos de carbono com base nos projetos em questão.


  1. Defensoria Pública do Estado do ParáDefensoria Pública do Estado do Pará, 31.07.2023. Defensoria do Pará ajuíza cinco ações para suspender construção de projetos de crédito de carbono em Portel https://defensoria.pa.def.br/noticia.aspx?NOT_ID=5969

  2. "colonialismo do carbono"WRM 2022. Neocolonialismo na Amazônia: Projetos REDD em Portel, Brasil https://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/neocolonialismo-na-amazonia-projetos-redd-em-portel-brasilhttps://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/neocolonialismo-na-amazonia-projetos-redd-em-portel-brasill

  3. “O Globo” publicou uma investigação jornalística detalhadaO Globo mit einer ausführlichen Recherche O Globo, 2.10.2023. Fraude na Amazônia: empresas usam terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono a gigantes multinacionais: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2023/10/02/fraude-na-amazonia-empresas-usam-terras-publicas-como-se-fossem-particulares-para-vender-creditos-de-carbono-a-gigantes-multinacionais.ghtml16-minütigen

  4. podcast de 30 minutosO Assunto #1.058: Fraude na Amazônia em créditos de carbono

    Reportagem exclusiva do g1 revelou que empresas particulares estão usando terras públicas na Amazônia para emitir créditos de carbono. A fraude acontece no município de Portel, na Ilha do Marajó (Pará). É lá onde ribeirinhos disseram não ter sido beneficiados pela venda de créditos de carbono a empresas multinacionais: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2023/10/03/o-assunto-1058-fraude-na-amazonia-em-creditos-de-carbono.ghtml

  5. video-reportagemVideoreportage O Globo, 2.10.2023. Defensoria do Pará aponta irregularidades em projetos de créditos de carbono na Amazônia:https://g1.globo.com/pa/para/video/defensoria-do-para-aponta-irregularidades-em-projetos-de-creditos-de-carbono-na-amazonia-11988936.ghtml

  6. projetos REDDREDD é uma sigla para “Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation”, o que, traduzido para o português, significa algo como “Reduzindo emissões do desflorestamento e degradação florestal”. Com este conceito - controverso, por vários motivos - deve ser financiada a proteção de florestas como depósitos de carbono.

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